quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Benjamin, Atget e os indícios


"O mérito inexcedível de Atget é ter radicalizado esse processo ao fotografar as ruas de Paris, deserta de homens, por volta de 1900. Com justiça, escreveu-se dele que fotografou as ruas como quem fotografa o local de um crime. Também esse local é deserto. É fotografado por causa dos indícios que ele contém. Com Atget, as fotos se transformaram em autos no processo da história. Nisso está sua significação política latente. Essas fotos orientam a recepção num sentido predeterminado. As contemplação livre não lhes é adequada. Elas inquietam o observador, que pressente que deve seguir um caminho definido para se aproximar delas."
Walter Benjamin, "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", 1935/1936

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A multidão e o historiador

Na avenida Paraná e cercania, em Londrina, localiza-se o centro comercial da cidade. Um cenário conhecido pela maioria dos londrinenses, porém, que guarda detalhes, situações inusitadas, perspectivas extraordinárias e lugares despercebidos. São elementos da paisagem urbana que estão escancarados aos olhos, mas que normalmente não são vistos.


Funcionários da Copel trabalhando na manutenção dos
postes elétricos localizados no bosque central da cidade

Local de contrastes, a rua é onde a população de uma cidade se encontra. Pobreza e riqueza, oportunidades e escassez de oportunidades, funcionários públicos, trabalhadores da indústria, trabalhadores informais, consumidores, batedores de carteiras, idosos e crianças, jovens e adultos. Gente de todo o tipo.

Fruto da observação da experiência coletiva cotidiana, essas cenas das ruas de Londrina, fixadas em imagens fotográficas são, guardadas as devidas proporções, como as imagens literárias das ruas de Londres disponíveis aos leitores do conto "O homem da multidão", de Edgar Allan Poe. Lá, o flâneur registrava suas observações com as palavras. Aqui, registramos com imagens.

Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. (Poe, Londres, 1844)
Calçadão comercial de Londrina, 2009


Descendo a escada do que se chama distinção, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontrei [...] mocinhas modestas voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda a sorte e de toda idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de joias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar-se, no vício, às suas colegas mais idosas [...] (Poe, 1844)

Calçadão comercial de Londrina, 2009


O historiador é, antes de mais nada, um flâuner da vida.

Como parte das atividades ligadas à disciplina de Métodos e Técnicas de Pesquisa, ministrada pelo professor dr. Rogério Ivano no mestrado de História Social da Universidade Estadual de Londrina, bem como às práticas discentes de pesquisa, ensino e extensão, foram realizadas, ao longo dos anos de 2009 e 2010, sessões fotográficas nas quadras que compõem o calçadão comercial de Londrina e redondezas. Algumas sessões foram realizadas durante os dias úteis com o propósito de registrar na objetiva da câmera a movimentação cotidiana das pessoas nos horários em que os estabelecimentos comerciais estavam em pleno funcionamento. Outras, no entanto, foram ao final do dia, quando o silêncio e o vazio preenchem o espaço deixado pelas vozes e pelos sons que durante todo o expediente ocuparam o ambiente público. Há também registros de manhãs dominicais, momentos em que o calçadão é tomado por artesãos, pasteleiros, floristas e outros vendedores que expõem seus trabalhados e promovem nova composição nesse ambiente urbano.

A feira do 'Feito à Mão' é realizada todo domingo
de manhã no Calçadão de Londrina

Mas, sendo a câmera recurso tecnológico de captação de imagens e fonte de informação sobre o mundo, quais são as possibilidades de leitura sobre o passado que uma fotografia abre para o observador?

A pergunta faz pensar a respeito das implicações que a utilização da técnica provoca sobre a produção cultural de uma época. Esse tema, que já em 1931 foi ensaiado por Walter Benjamin em "Pequena história da fotografia", ainda, e cada vez mais, traz à tona reflexões relativas ao nosso próprio momento histórico.Vivemos a era da imagem: celulares, câmeras digitais, máquinas filmadoras, sites como o you tube e blogspot são recursos amplamente difundidos entre a população mundial que com muita facilidade e qualidade captam e distribuem o mundo em imagens.

Para Benjamin, a divulgação simultânea dos trabalhos de fixação da imagem em camera obscura de Niepce e Daguerre, bem como de Hercules Florence, transformou o horizonte da pintura de retratos e inaugurou um novo momento na história da arte. Eis os primórdios da fotografia... lá pelos idos de 1830... Houve quem dissesse que além de ser cientificamente impossível "fixar efêmeras imagens de espelho", a fotografia era um projeto sacrílego. O jornal alemão Leipziger Anzeiger participou de um debate a respeito do tema protestando contra a "diabólica invenção". O texto dizia o seguinte:


[...] O homem foi feito à semelhaça de Deus, e a imagem de Deus não pode ser fixada por nenhum mecanismo humano. No máximo o próprio artista divino, movido por uma inspiração celeste, poderia atrever-se a reproduzir esses traços ao mesmo tempo divinos e humanos, num momento de suprema solenidade, obedecendo às diretrizes superiores do seu gênio, e sem qualquer artifício mecânico. (Leipziger Anzeiger apud Benjamin, 1931, p. 92)

Decorridos uns bons anos da publicação desse manifesto jornalístico, percebe-se hoje tranquilamente que o argumento do texto não teve grande repercussão. A fotografia se popularizou de uma tal maneira que atualmente, ao menos no que se refere à população urbana mundial, é difícil encontrar quem não tenha um acesso relativamente fácil a esse artifício mecânico.

Mas, voltando a Walter Benjamin... o filósofo alemão ressalta o fato de a técnica poder dar às suas criações um valor mágico surpreendente, pois apesar da perícia do fotógrafo, de sua habilidade no manejo da câmera e também na revelação da imagem, é "[...] a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem [...]." que interessa ao observador de uma fotografia. (Benjamin, p. 94).

[...] A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através de seus recursos auxiliares: câmera lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (Benjamin, p. 94)
Pois Benjamin acaba por concluir que, ainda que a fotografia revele "mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e significativas", ela também revela que "a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente histórica". (Benjamin, p. 94-5). 
Pois se em seus primórdios a fotografia foi negada pela ciência e identificada a um instrumento diabólico, atualmente é a pedra de toque da nossa imagem de mundo e fonte de pesquisa para inúmeros profissionais das ciências.

O diagnóstico de Benjamin a respeito da inserção da fotografia na esfera da arte é o seguinte: a fotografia como expressão artística teve seu apogeu no primeiro decênio após o nascimento técnico da camera obscura, por volta de 1840. O crédito de tal feito ele dá aos Nadar, Hugo, Cameron e Hill, bem como os Stelzner, os Pierson, os Bayard. Todavia, na opinião do filósofo a esfera artística da fotografia sucumbiu à industrialização. 

Mas finalmente os homens de negócios se instalaram profissionalmente como fotógrafos, e quando, mais tarde, o hábito do retoque, graças ao qual o mau pintor se vingou da fotografia, acabou por generalizar-se, o gosto experimentou uma brusca decadência. Foi nessa época que começaram a surguir os álbums fotográficos. (Benjamin, p. 97)

Diz Benjamin, com todas as palavras traduzidas por Sérgio Paulo Rouanet, que ao adentrarem o ramo da fotografia, os homens de negócios provocaram a decadência brusca do gosto e, simultaneamente, começaram a surgir os álbuns fotográficos. Uma ruptura estética foi provocada pela fotografia no âmbito da arte e isso, ao generalizar-se, provocou a decadência da produção e da recepção da pintura, principalmente de retratos e de miniaturas, que não por acaso foram as atividades artísticas mais afetadas pela fotografia.

Mas, que gosto é esse a que se refere o autor? Um gosto que não era próprio da cultura burguesa alemã novecentista. Um gosto que era fruto de uma arte aristocrática, fiel e auto herdeira de gregos clássicos, romanos e renascentistas. Clássica, religiosa, arrebatadora, bela seriam esses alguns dos adjetivos para definir essa arte que, segundo Benjamin, entrou em decadência com a ampliação social da fotografia, que por sua vez tornou-se um forte símbolo da modernidade.
Já por volta de 1860 começa a se tornar comum, em lares alemães, a disposição de álbuns de fotografias pelos cômodos 'públicos' das casas burguesas.

[...] Eles podiam ser encontrados nos lugares mais glaciais da casa, em consoles ou guéridons, na sala de visitas — grandes volumes encadernados em couro, com horríveis fechos de metal, e as páginas com margens douradas, com a espessura de um dedo, nas quais apareciam figuras grotescamente vestidas ou cobertas de rendas [...]. Os acessórios desses retratos, com seus pedestais, balaustradas e mesas ovais evocam o tempo em que, devido à longa duração da pose, os modelos precisavam ter pontos de apoio para ficarem imóveis. (Benjamin, p. 98)

Mas, Benjamin ainda encontra na fotografia a possibilidade artística e, mesmo que em meio à nascente indústria cultural, vê nas fotografias de Eugène Atget e August Sander uma saída para a arte ainda que sob condições adversas.
Atget era pobre, desconhecido e vendia suas fotografias por alguns centavos para qualquer um que quisesse pagar. Foram altamente reproduzidas por publicistas da época de Benjamin e, além disso, foram precursoras da fotografia surrealista (p. 100).

[...] Ele buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes de cidades; elas sugam a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio que afunda." (Benjamin, p. 101).



E o que é a aura para Walter Benjamin?

[...] É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja. (Benjamin, p. 101).

 Mas, continua,

[...] fazer as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas, é uma tendência tão apaixonada do homem contemporâneo quanto a superação do caráter único das coisas, em cada situação, através de sua reprodução. (Benjamin, p. 101).
 O homem contemporâneo de Benjamin é o agente da indústria cultural, aquele que trabalha pela transformação da arte em mercadoria, que tenta superar o caráter único do acontecimento em si  apresentando a fotografia como sua reprodução. Imagem é a maneira como Benjamin chama o acontecimento em si. Nela, na imagem, afirma, "a unicidade e a durabilidade se associam tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a reprodutibilidade". (p. 101) Atget fotografou uma Paris vazia. Não há pessoas em suas reproduções. Os locais mais movimentados da cidade aparecem nas fotografias de Atget vazios, silenciosos, distantes da realidade cotidiana da vida urbana. E, justamente por isso, produz uma obra de arte com suas fotografias.




Entretanto, no caso de Sander a questão se inverte. Para Benjamin, suas fotografias são artísticas justamente devido à presença das pessoas. Numa perspectiva científica, organizou sua obra em sete grupos que "correspondem à atual ordem social" e que pode ser percebidos enquanto uma perspectiva antropológica.

[...] "Sander parte do camponês, do homem ligado à terra, conduz o observador por todas as camadas e profissões, desde os representantes da mais alta civilização até os idiotas". Nessa terafa imensa, o autor não se comportou como cientista, não se deixou assessorar por teóricos racistas ou por sociólogos, mas partiu, simplesmente, da "observação imediata". (Benjamin, p. 103).





Porém, lembra Benjamim, no âmbito da "arte como fotografia" há, de fato, a possibilidade de que a fotografia se apresente para muitas pessoas como a única via de acesso da realidade artística: pinturas, esculturas e outras obras de arte que só podem entrar para o imaginário de uma pessoa graças à reprodução fotográfica. Essa é, para o filósofo, a rendenção da fotografia. 

Mas, consideremos um caso: o caso das fotografias da cidade: ruas, pessoas, construções arquitetônicas, momentos, passagens, cenas inusitadas que passam inconscientemente diante dos olhos dos transeuntes. Fixadas pela objetiva da câmera, essas cenas se cristalizam, tornam-se imagens do vivido e, como uma espécie de imã, magnetizam o olhar do observador.

Segundo o historiador contemporâneo Sthephen Greenblatt, a fotografia, um objeto cultural e também uma fonte historiográfica, ao mesmo tempo em que tem o poder de entrar em ressonância com as forças culturais do passado, encanta o observador.


Por ressonância entendo o poder do objeto exibido de alcançar um mundo maior além de seus limites formais, de evocarem quem os vê as forças culturais complexas e dinâmicas das quais emergiu e das quais pode ser considerado pelo espectador como uma metáfora ou simples sinédoque. Por encantamento entendo o poder do objeto exibido de pregar o espectador em seu lugar, de transmitir um sentimento arrebatador de unicidade, de evocar uma atenção exaltada. (Greenblatt, 1991, p. 8)

A fotografia cristaliza o movimento e o tempo, o balançar de um braço, o segundo. Faz parecer ser aquilo que não foi. Evoca a realidade e encanta o historiador, faz crer que mesmo sendo o congelamento de uma fração de segundo, pode revelar o que aconteceu.

Longe de ser um documento neutro, a fotografia cria novas formas de documentar a vida em sociedade. Mais que a palavra escrita, o desenho e a pintura, a pretensa objetividade da imagem fotográfica [...] não apenas informa o leitor — sobre datas, localização, nome de pessoas envolvidas nos acontecimento — sobre as transformações de tempo curto, como também cria verdades a partir de fantasias do imaginário [...]. (Borges: 2008, p. 69)


O cotidiano inusitado: cenas do calçadão londrinense






Crédito das fotografias:
Fábio Martins Bueno




Crédito das fotografias:
Maria Siqueira Santos



Crédito das fotografias:
Max Alexandre de Paula






Crédito das fotografias:
Rogério Ivano


Referências bibliográficas:
  • Benjamin, Walter. "Pequena história da fotografia". In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 91-107. 
  •  Borges, Maria Eliza Linhares. História e fotografia. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
  • Greenblatt, Stephen. "O novo historicismo: ressonância e encantamento. In: Estudos Históricos, vol. 4, n. 8. Rio de Janeiro, 1991, p. 244-261. 
  • Poe, Edgar Allan. O homem na multidão. Obtido em: http://www.alfredo-braga.pro.br/biblioteca/homemnamultidao.html. Acessado em: 20/08/2010.

Site relacionado:

Historiadores e detetives: o superdimensionamento de Carlo Ginzburg


Em Sinais: Raiz de um paradigma indiciário Carlo Ginzburg teoriza sobre o método de encontrar nos indícios os caminhos que levam o historiador ao conhecimento verdadeiro ou, no caso do detetive investigador, à identidade do autor do crime. Ginzburg nos fala em seu texto de Morelli, crítico de arte, perito, que publicou com o pseudônimo Ivan Lermolieff alguns artigos sobre a maneira na qual ele identifica a autenticidade de uma pintura. Seu método sugere a observação dos detalhes negligenciáveis da obra de arte, aqueles que nunca são alvos de estudos. A estratégia é trabalhar o olhar naquilo que o falsificador deixou passar, por julgar desnecessário copiar exatamente igual ao legítimo autor, aí está o início do trabalho do pesquisador “indiciário”: chegar aos signos pictóricos característicos do suposto autor através daquilo que o falsificador negligenciou. Os falsificadores talvez por se preocuparem demais com o que pessoas costumam olhar nas obras de arte e que eventualmente elas possam identificar como fraude, ignora o sutil como: a curvatura de uma orelha.
Para Ginzburg, uma atitude investigativa semelhante está também nas proposições de Sigmund Freud e nas obras literárias de Arthur Conan Doyle:

“Nos três casos, pistas talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. Pistas: mais precisamente sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pictóricos (no caso de Morelli).” (GINZBURG, 2003, p.150)

Importante mencionar que Ginzburg na construção de sua argumentação não se limita a essas três convergências. O texto é deslocado para as evidências que ligam o paradigma indiciário às sociedades caçadoras, à arte divinatória, às estratégias de averiguação da identidade (praticada pelos Estados) e etc. Entre essas práticas apresentadas, a Medicina ganha destaque, segundo Ginzburg, porque, entre os séculos XVIII e XIX, em relação às outras ciências humanas, ela se afirmou “pelo prestígio epistemológico e social” (GINZBURG, 2003, p.170) É ela o fator comum que Ginzburg identifica entre as práticas de Freud, Morelli e Conan Doyle. Todos estudaram de alguma forma a medicina, sendo assim, conheceram o método de diagnóstico conhecido como semiótica médica: “a disciplina que permite diagnosticar as doenças incessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes a olhos do leigo – o doutor Watson, por exemplo.” (GINZBURG, 2003, p.171)
Questionando essa leitura, o texto do professor Hélio Rebello Cardoso Jr, em Método historiográfico: método conjectural-semiótico de Holmes-Ginzburg e método serial de Dupin, considera que:

“A extensão atribuída por Ginzburg ao paradigma conjectural parece superdimencionada. No mínimo, desconhece-se a especificidade de cada método, quando se alega haver entre eles uma afinidade tal, que ignora os âmbitos diferenciados em que são aplicados. Além disso, o método de Holmes não se pauta na busca do detalhe, como fazem os detetives vulgares que esquadrinham o local suspeito. Holmes procede por associação informada pelo acúmulo de conhecimento. Somente assim suas pistas se tornam ‘quentes” (CARDOSO, 2001, p.5)

Suas críticas baseiam-se em dois argumentos principais: a negligência de Ginzburg em considerar “os âmbitos diferenciados em que são aplicados” os métodos interpretativos e o fato de o método Sherlock Holmes não se pautar na “busca do detalhe”. Duas questões amplas pautadas do ‘detalhe’? Ou dois detalhes de uma questão ampla?

Uma pergunta comum parece ter estado na mente de Sir. Arthur Conan Doyle em meados de 1887. Primeiro de uma série, o romance policial Um estudo em vermelho, narrado através das memórias do personagem Dr. Watson, traz várias situações em que o detetive revela nuances do seu método investigativo:

“- Bem, esse é meu negócio. E creio que sou o único no mundo. Sou um detetive consultor, se você entende o que isso significa. Em Londres nós temos muitos detetives de polícia e muitos detetives particulares. Quando esses profissionais ficam desorientados, vêm até mim, e eu os coloco na trilha certa. Eles me apresentam todas as evidências e, normalmente, auxiliado por meus conhecimentos sobre história do crime, consigo organizá-las. Existe uma forte semelhança entre as diversas “famílias” de delitos. Se você conhecer todos os detalhes de mil crimes, dificilmente não desvendará o milésimo primeiro (...).” (DOYLE, 2009, p.22)

De certa forma Holmes explica a Watson porque se julga capaz de deduzir a história de uma pessoa, sua profissão ou seu ramo de atividade. Na trama do romance essa exposição do método ocorre depois que Dr. Watson lê um artigo que Holmes assina que:

“A partir de uma gota d`água, dizia o autor, “um pensador lógico poderia inferir a possibilidade de um Atlântico ou de um Niágara, sem ter visto ou ouvido qualquer um deles. Assim é a vida, uma grande corrente cuja natureza podemos conhecer analisando um único elo. Com todas as outras artes, a Ciência da Dedução e Análise só pode ser adquirida mediante estudos longos e pacientes. Contudo, a vida não é extensa o suficiente para permitir que qualquer mortal chegue à perfeição nesta ciência.” (DOYLE, 2009, p.21)

O personagem Sherlock Holmes afirma ser possível deduzir a partir de um detalhe “mediante estudos longos e pacientes” sua ligação com todo, seja ele um rio, a profissão de um sujeito, um crime. De certa forma, sua utilidade para os policiais da Scotland Yard está no fato dele conseguir transformar os indícios em evidência e, posteriormente, elaborar uma hipótese sobre o autor do crime. Seu faro, golpe de vista, intuição, associação, se devem por possuir conhecimento acumulado sobre o assunto. Assim é possível desvendar os crimes com facilidade incomum, conhecendo “todos os detalhes de mil crimes”.

Todavia, a referência que Carlo Ginzburg utiliza para demonstrar a relação do personagem de Conan Doyle com o paradigma indiciário, está numa outra trama. Diz Holmes ao Dr. Watson em A caixa de papelão (1983): “(...) examinei as orelhas contidas na caixa com olhos de especialista e observei acuradamente as suas características anatômicas” (DOYLE, 2009a, p.2). Holmes diz isso após sair da casa da Senhorita Cushing, idosa senhora solitária que recebera a caixa de papelão com um par de orelhas. Aqui, a mesma situação: um detalhe, a orelha, e outro crime, fato, a ser desvendado – alguém perdeu a orelha, mas quem foi? Por quê? E ainda: como tudo isso se relaciona com a Senhorita Cushing?
Ginzburg cita o trecho em que Holmes mostra-se:

"Na qualidade de médico, Watson, deve saber. Na Revista Antropológica do ano passado, você encontrará duas breves monografias de minha lavra sobre o assunto. Examinei, por isso, com olhos de entendido, as orelhas contidas na caixa, e verifiquei cuidadosamente suas peculiaridades anatômicas. Imagine, pois, meu espanto quando, ao olhar para a srta. Cushing, reparei corresponder sua orelha à orelha feminina que eu acabara de inspecionar. Não era possível pensar em coincidência. Ali estava o mesmo encurtamento da aurícula, a mesma curva larga do lobo superior, a mesma circunvolução da cartilagem interna. Em todos os pontos essenciais, era perfeita a semelhança. Percebi logo a enorme importância de tal observação. Era evidente ser a vítima uma consangüínea e até, provavelmente, parente muito próxima. Comecei a falar-lhe de sua família, e você se lembra que ela nos propiciou informações particularmente preciosas.” (DOYLE, 2009a, p.2)




Em outra forma de expor o raciocínio lógico de Holmes: se “não existe parte do corpo humano que apresente tantas variações como a orelha” e “Cada uma tem as próprias características, e difere de todas as demais.”, logo, orelhas iguais, corpos humanos iguais. Na trama do conto, o detetive, em sequência anterior a citada por Ginzburg, tivera visto as orelhas na caixa de papelão. Uma de suas intenções era saber a identidade delas. Com isso em mente e com suas “duas breves monografias” de sua própria lavra no assunto, a orelha, signo, irá permanecer no seu olhar enquanto observa a senhora. Daí segue a observação do detalhe: “Ali estava o mesmo encurtamento da aurícula, a mesma curva larga do lobo superior, a mesma circunvolução da cartilagem interna”. A conclusão “Era evidente ser a vítima uma consangüínea e até, provavelmente, parente muito próxima.”(DOYLE, 2009, p.2)
O outro argumento em que se baseia a crítica de Hélio Rebello, refere-se aos meios diferenciados em que são aplicados os métodos – o método de Sherlock Holmes e o semiótico médico:

“A fina percepção de Holmes, informada pelo conhecimento médico, expressa-se em observações empíricas nas quais a ligação, entre o detalhe (pista) e o fato maior, isto é, a identidade da vítima, faz-se por meio de uma conjectura por evidência. Ao contrário da sintomatologia médica e das demais disciplinas conjecturais,o método de Holmes aduz a uma hipótese a ser comprovada, ao passo que a etiologia médica constrói hipóteses sobre a causa de uma doença, mas não atinge jamais o grande fato que pressupõem como origem a disfunção orgânica, ou seja, a vida, conforme Foucault.”(CARDOSO, 2001, p.5)

De fato, Holmes trabalha sempre com uma hipótese, esta, por sinal, não é a nós, leitores, revelada de imediato. Nas duas histórias aqui analisadas – A caixa de papelão e Um estudo em Vermelho – é depois das evidências serem certificadas quanto a suas validades que o detetive encaminha a investigação na direção da captura do criminoso, a conclusão. Existe uma hipótese, e ela é trabalhada, pois, a soma das evidências não permite outra saída. Já com o procedimento médico, em particular aquele que se liga ao ‘paradigma indiciário’, a semiótica médica, o trabalho se desenvolve sobre uma série hipóteses. Mas será essa medicina mencionada pelo professor Hélio é a mesma que Ginzburg se refere?

A pergunta surge, pois, a medicina que o historiador italiano se refere está datada nos finais do século XIX, por isso a associação com Conan Doyle, Morelli e Freud. Já a referida pelo professor Hélio, parece ser contemporânea. Na impossibilidade, momentânea, de verificar se a etiologia, nosologia e sintomatologia eram práticas da medicina do século XIX, tomarei como válida a relação.

Sobre a relação do ‘paradigma indiciário’ e a semiótica médica, no artigo “A construção das doenças na medicina ocidental contemporânea” produzido no projeto Estudo comparativo de racionalidades médicas, Instituto de Medicina Social do Rio de Janeiro, há uma referência interessante envolvendo o paradigma indiciário. Aponta o médico Kenneth Rochel Camargo após analisar dois dos três eixos que compõem “arcabouço genérico de construção discursiva” da medicina – Explicativo, Morfológico e Semiótico:

“(...) O terceiro [semiótico] e último eixo é o da clínica propriamente dita onde as doenças são vistas como constelações de sinais e sintomas, formando gestalts semiológicas. (...) Fica claro, portanto, que esse eixo comporta um desenvolvimento simultâneo em duas direções: a da individualização, recorrendo ao método indiciário ( tal como descrito por Ginzburg) para recortar um gestalts semiológica específica, ao mesmo tempo, há um movimento de generalização, localizando o caso individual num inventário de doenças (a grade nosológica que aludi há pouco) produzido segundo o mesmo método (...)” (CAMARGO, 1993, p.31)

De fato, nessa perspectiva a forma com que os médicos captam os indícios através dos sintomas, sinais, em muito se assemelha ao procedimento de Holmes, principalmente quando esses sintomas são interpretados dentro de um “inventário de doenças”. É certo que o detetive não foge a essa totalidade, conhece “todos os detalhes de mil crimes” (DOYLE, 2009, p.22) e por isso elabora sua hipótese. No entanto, a investigação médica precisa elaborar um conjunto de hipóteses sobre a origem, a identidade, da disfunção orgânica. Ao paciente até final de sua vida são hipóteses que podem vir a ser comprovadas, trabalhadas, diminuídas ou unificadas para diagnosticar seu corpo doente. Evidentemente, com o óbito do paciente um conhecimento mais profundo e detalhado pode revelar ‘a verdade’, mas, nesse estágio, o movimento da vida não se capta mais. Têm-se uma hipótese comprovada, mas não no movimento da vida. O mistério da causa da morte está na própria vida e na sua terrível complexidade.

Texto disponível em:

BUENO, Fábio Martins. Sherlock Holmes e Dupin: personagens que inspiram o método investigativo em história. In Anais do II Colóquio de Letras. Assis: UNESP, 2010.
http://www.assis.unesp.br/coloquioletras/int_conteudo_sem_img.php?conteudo=715

Historiadores e Detetives: o detalhe cultural a partir de um modelo sistêmico

Em “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, a construção do texto se dá pela demonstração de como o ‘paradigma indiciário’ tem origens longínquas e circulou em diversas temporalidades. Ginzburg cita as sociedades caçadoras que interpretavam os sinais, os detalhes, para localizar a caça. Afirma que assim como para os caçadores, os médicos, psicanalistas e peritos em arte, o detalhe permite, mediante a elaboração de uma conjectura, criar hipóteses sobre as relações com que objeto mantém com uma dada realidade. Todavia, Ginzburg também verifica que o ‘paradigma indiciário’ pode ser estendido aos historiadores: o detalhe, entendido através de uma noção de cultura, por isso detalhe cultural, pode levar o historiador à compreensão de uma dimensão mais ampla e profunda do passado:


“Mas o mesmo paradigma indiciário usado para elaborar formas de controle social sempre mais sutis e minuciosas pode se converter num instrumento para dissolver as névoas da ideologia que, cada vez mais, obscurecem a estrutura social como a do capitalismo maduro. Se as pretensões de um conhecimento sistemático mostram-se cada vez mais com veleidades, nem por isso a idéia de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrário: a existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios - que permitem decifrá-la.” (GINZBURG, 2003, p.177)

Justapondo esse trecho ao texto do prefessor Hélio Rebello, podemos formular a pergunta: em qual noção de totalidade o historiador “ginzburguiano” está fundado para elaborar “uma explicação que, envolvendo a cultura e o movimento da história, pode reconstruir em eventos individuais a própria historicidade do homem”? (CARDOSO, 2001, p.6). Acredito que Ginzburg assume sua vinculação ao materialismo histórico quando diz que o paradigma indiciário pode ser utilizado para “dissolver as névoas da ideologia que, cada vez mais, obscurecem a estrutura social como a do capitalismo maduro”. Isso explica em parte os motivos pelos quais ele anuncia na primeira parte do texto que o paradigma talvez “possa ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre “racionalismo” e “irracionalismo”. (GINZBURG, 2003, p.143). Entendo que “racionalismo” a que o historiador se refere, seja a capacidade do historiador de aferir a validade dos dados superficiais que mantém “conexão” a uma “realidade mais profunda” dos fenômenos históricos, “as névoas da ideologia que, cada vez mais, obscurecem a estrutura social como a do capitalismo maduro”.

De certa forma, Ginzburg, com sua argumentação tenta associar um modelo sistêmico – materialismo histórico – através de um paradigma interpretativo – indiciário ou semiótico. No entanto, a associação entre Holmes e o paradigma indiciário, através da semiótica médica, revelou-se, com sugerido pelo professor Hélio Rebello, superdimensionada. É bem provável que Arthur Conan Doyle, por intermédio do seu tio, tenha conhecido o método de Morelli ou por intermédio de outros “veículos de idéias” como sugere o próprio Ginzburg. Interessante que a palavra “superdimensionada” permite sair do campo do verdadeiro ou falso. Permite interpretar o movimento de Ginzburg a partir da valorização de certa familiaridade, relação entre os saberes de tradição semiótica, indiciária e literária.
1 “(...) Tudo isso sugere a possibilidade de um conhecimento direto do método morelliano por parte de Conan Doyle, por intermédio do seu tio. Mas trata‐se de uma suposição não necessária, na medida em que os textos de Morelli certamente não eram o único veículo de ideias como as que tentamos analisar” In: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e das ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. SP: Cia. Das Letras, 2005, p.262.
Texto integral disponível em:

BUENO, Fábio Martins. Sherlock Holmes e Dupin: personagens que inspiram o método investigativo em história. In Anais do II Colóquio de Letras. Assis: UNESP, 2010.
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Historiadores e detetives: Dupin e as séries


O professor Hélio Rebello propõe uma alternativa ao pesquisador que busca uma inspiração em personagens detetives. No conto A carta roubada de Edgar Allan Poe pode-se encontrar diversas passagens em que o detetive Dupin pensa seu método de investigação. No conto, uma carta contendo informações de alto valor foi roubada de um membro importante da corte. Todos sabem a identidade do ladrão, pois a vítima viu o exato momento em que foi roubada. O ladrão, o Ministro D, roubou a carta especial ao trocá-la pela carta que carregava no bolso. A vítima naquele momento não podia fazer nada, estavam todos em uma sala, se reagisse à investida do Ministro D, causaria nas pessoas que ali estavam o que menos desejava: o nome do remetente. Vendo-se nessa situação e não podendo fazer nada, a vítima acionou os agentes policiais. Esses secretamente examinam sucessivas vezes a casa do Ministro D, desde latrinas, pés das camas, livros, fechaduras, mas, sem sucesso.

Sem saídas, o Agente G procura o detetive Dupin. O detetive ouve a narração do caso e questiona o Agente G sobre as características dos envolvidos. Rapidamente procede a conversa que evidencia o grau de importância da carta e a principal pergunta ascende: aonde elas poderiam estar considerando os detalhes pessoais do ladrão, Ministro D; um homem versado em poesia e matemática? Em silêncio e pensativo, Dupin diz ao agente policial que não pode dar outro conselho a não ser que continuem as buscas na casa do Ministro D.

Passados alguns meses, o Agente retorna a casa do detetive oferecendo uma recompensa maior pela obtenção da carta:

“— Uma bolada. Estão oferecendo o dobro, agora. Eu daria do meu próprio bolso cinqüenta mil francos para quem conseguisse trazer essa carta para mim
— “Nesse caso”, disse Dupin, abrindo uma gaveta, “você poderia muito bem preencher um cheque com essa quantia para mim. Depois que você assiná-lo, eu lhe entregarei a carta”. (POE, 2006, p.20)

O detetive tira de sua escrivaninha a carta e a entrega ao agente que sai apressado do escritório. Dupin, satisfeito, olha para o assistente que sem entender a situação expressa no olhar a vontade de saber: “como ele recuperou a carta?” Dupin explica:

“Veja o caso da busca no apartamento de D***. O chefe de polícia partiu do princípio de que todos os homens procuram esconder uma carta roubada num esconderijo supostamente difícil de ser descoberto: um canto da casa, uma fresta, um buraco num móvel. Mas só mentes comuns agem assim, pois a descoberta do objeto roubado fatalmente virá, só dependendo de cuidado, paciência e obstinação da parte dos que o estão procurando.” (POE, 2006, p.21)

A explicação do detetive Dupin para o seu sucesso não é revelada sem antes compreender os motivos que levavam a polícia ao fracasso: eles não variam de método de investigação, possuem um roteiro que seguem a risca e também desconsideram a mente do adversário, sua provável maneira organizar um esconderijo. Embora em mundos distintos, esses temas mencionados no conto são até hoje caros aos historiadores. Atento a essas questões, o historiador Hélio Rebello escreve sobre as diferenciações entre o método do detetive Dupin e o paradigma conjectural semiótico:

“[...] os procedimentos de Dupin não podem corresponder à aplicação do paradigma conjectural às ciências humanas, nem em sua suposta versão semiótica- culturalista. O lugar onde se encontra a carta é o lugar onde se encontra a carta, embora não seja visível para todos. Quer dizer, o objeto não representa nada além de si mesmo, de forma que nenhum detalhe, nenhum “fenômeno de superfície”, poderia dar acesso a uma “conexão profunda”. O objeto se esgota na superfície, embora, repita-se, ele seja visível e invisível, passe por evidência ou por segredo, de acordo com a posição do olhar de cada envolvido. Com efeito, ater-se aos detalhes, neste caso, seria apenas a exacerbação da idéia de que o objeto encontra-se dentro do princípio que o investigador ou o historiador toma para si como sendo fundamentais para sua investigação ou para seu conhecimento histórico (a cultura, o movimento da história) [...]” (REBELLO, 2001, p.8)

Diferente do historiador italiano Carlo Ginzburg na sua perspectiva marxista, na interpretação de Hélio Rebello os procedimentos de Dupin em A carta roubada não se pautam no detalhe para alcançar uma realidade mais profunda e abrangente: o lugar onde a carta está é o lugar onde está a carta. Considerando que o objeto do detetive é o local onde está a carta, o objeto se transforma a partir do olhar daqueles que se interessam por sua busca. Dupin chega a esse raciocínio primeiramente considerando a lógica de seu adversário, o Ministro D. A partir dessas considerações e do fato das sucessivas buscas da polícia em pormenores da casa terem resultado em nada, percebe que há algo em comum entre a série um – membro da corte, ministro, carta e a série dois – detetive, ministro, carta. Em ambas as séries o jogo de mostrar e esconder a carta deixando ela sob uma evidência. Nenhum dos agentes desconfiaria que a carta roubada contendo informações de extrema relevância estaria à vista de todos:

“O detetive não faz mais do que cruzar duas séries para encontrá-la, como indica Deleuze. Numa primeira série, o personagem que deseja esconder a carta, pensa em ocultá-la deixando em evidência; o ministro que tudo percebe e toma a carta. Numa segunda série, o ministro, que agora deseja esconder a carta, pensa em ocultá-la deixando-a em evidência; Dupin tudo percebe e retoma a carta. Dupin, cruzando duas séries, percebe que há entre elas relações bastante definidas, que se exprimem regularmente por um jogo de visibilidade e invisibilidade do lugar da carta, a qual, materialmente, está sempre em evidência, sempre na superfície. E é justamente essas relações por ele sistematizadas que habilitam a recuperar a carta.” (REBELLO, 2001, p.9)
Texto disponível em:
BUENO, Fábio Martins. Sherlock Holmes e Dupin: personagens que inspiram o método investigativo em história. In Anais do II Colóquio de Letras. Assis: UNESP, 2010.
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CARDOSO, Hélio Rebello. Método historiográfico: método conjectural-semiótico de Holmes-Ginzburg e método serial de Dupin. In: Tramas de Clio: convivência entre filosofia e história. Curitiba: Ed. Aos quatro ventos, 2001, p.3 -12.

CAMARGO, Kenneth Rochel de. A construção das doenças na medicina ocidental contemporânea. Rio de Janeiro: Revista da SBHC, n.9, p.31-40, 1993. Acesso em 05/08/2009: www.mast.br/arquivos-sbhc/111.pdf

DOYLE, Arthur Conan. Sherlock Holmes: A caixa de papelão. Acesso em 02/07/2009: http//mundosherlock. googlepages.com/arthurconandoyle-acaixadepapelao.

DOYLE, Arthur Conan. Sherlock Holmes: um estudo em vermelho. São Paulo: Melhoramentos, 2009.

GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 2003, p.143 -179

POE, Edgar Allan. A carta roubada. In: Quatro contos. São Paulo: SOL, 2006, p.17-24.
http://200.136.76.125/colegio/livros/download/quatro_contos.pdf



Jogos de escalas




(REVEL, 1996, p.37)

(REVEL, 1996, p.38)

REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: Jogos de escalas. 1º ed. SP:FGV, 1998, p.15-38.