quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Historiadores e detetives: o superdimensionamento de Carlo Ginzburg


Em Sinais: Raiz de um paradigma indiciário Carlo Ginzburg teoriza sobre o método de encontrar nos indícios os caminhos que levam o historiador ao conhecimento verdadeiro ou, no caso do detetive investigador, à identidade do autor do crime. Ginzburg nos fala em seu texto de Morelli, crítico de arte, perito, que publicou com o pseudônimo Ivan Lermolieff alguns artigos sobre a maneira na qual ele identifica a autenticidade de uma pintura. Seu método sugere a observação dos detalhes negligenciáveis da obra de arte, aqueles que nunca são alvos de estudos. A estratégia é trabalhar o olhar naquilo que o falsificador deixou passar, por julgar desnecessário copiar exatamente igual ao legítimo autor, aí está o início do trabalho do pesquisador “indiciário”: chegar aos signos pictóricos característicos do suposto autor através daquilo que o falsificador negligenciou. Os falsificadores talvez por se preocuparem demais com o que pessoas costumam olhar nas obras de arte e que eventualmente elas possam identificar como fraude, ignora o sutil como: a curvatura de uma orelha.
Para Ginzburg, uma atitude investigativa semelhante está também nas proposições de Sigmund Freud e nas obras literárias de Arthur Conan Doyle:

“Nos três casos, pistas talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. Pistas: mais precisamente sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pictóricos (no caso de Morelli).” (GINZBURG, 2003, p.150)

Importante mencionar que Ginzburg na construção de sua argumentação não se limita a essas três convergências. O texto é deslocado para as evidências que ligam o paradigma indiciário às sociedades caçadoras, à arte divinatória, às estratégias de averiguação da identidade (praticada pelos Estados) e etc. Entre essas práticas apresentadas, a Medicina ganha destaque, segundo Ginzburg, porque, entre os séculos XVIII e XIX, em relação às outras ciências humanas, ela se afirmou “pelo prestígio epistemológico e social” (GINZBURG, 2003, p.170) É ela o fator comum que Ginzburg identifica entre as práticas de Freud, Morelli e Conan Doyle. Todos estudaram de alguma forma a medicina, sendo assim, conheceram o método de diagnóstico conhecido como semiótica médica: “a disciplina que permite diagnosticar as doenças incessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes a olhos do leigo – o doutor Watson, por exemplo.” (GINZBURG, 2003, p.171)
Questionando essa leitura, o texto do professor Hélio Rebello Cardoso Jr, em Método historiográfico: método conjectural-semiótico de Holmes-Ginzburg e método serial de Dupin, considera que:

“A extensão atribuída por Ginzburg ao paradigma conjectural parece superdimencionada. No mínimo, desconhece-se a especificidade de cada método, quando se alega haver entre eles uma afinidade tal, que ignora os âmbitos diferenciados em que são aplicados. Além disso, o método de Holmes não se pauta na busca do detalhe, como fazem os detetives vulgares que esquadrinham o local suspeito. Holmes procede por associação informada pelo acúmulo de conhecimento. Somente assim suas pistas se tornam ‘quentes” (CARDOSO, 2001, p.5)

Suas críticas baseiam-se em dois argumentos principais: a negligência de Ginzburg em considerar “os âmbitos diferenciados em que são aplicados” os métodos interpretativos e o fato de o método Sherlock Holmes não se pautar na “busca do detalhe”. Duas questões amplas pautadas do ‘detalhe’? Ou dois detalhes de uma questão ampla?

Uma pergunta comum parece ter estado na mente de Sir. Arthur Conan Doyle em meados de 1887. Primeiro de uma série, o romance policial Um estudo em vermelho, narrado através das memórias do personagem Dr. Watson, traz várias situações em que o detetive revela nuances do seu método investigativo:

“- Bem, esse é meu negócio. E creio que sou o único no mundo. Sou um detetive consultor, se você entende o que isso significa. Em Londres nós temos muitos detetives de polícia e muitos detetives particulares. Quando esses profissionais ficam desorientados, vêm até mim, e eu os coloco na trilha certa. Eles me apresentam todas as evidências e, normalmente, auxiliado por meus conhecimentos sobre história do crime, consigo organizá-las. Existe uma forte semelhança entre as diversas “famílias” de delitos. Se você conhecer todos os detalhes de mil crimes, dificilmente não desvendará o milésimo primeiro (...).” (DOYLE, 2009, p.22)

De certa forma Holmes explica a Watson porque se julga capaz de deduzir a história de uma pessoa, sua profissão ou seu ramo de atividade. Na trama do romance essa exposição do método ocorre depois que Dr. Watson lê um artigo que Holmes assina que:

“A partir de uma gota d`água, dizia o autor, “um pensador lógico poderia inferir a possibilidade de um Atlântico ou de um Niágara, sem ter visto ou ouvido qualquer um deles. Assim é a vida, uma grande corrente cuja natureza podemos conhecer analisando um único elo. Com todas as outras artes, a Ciência da Dedução e Análise só pode ser adquirida mediante estudos longos e pacientes. Contudo, a vida não é extensa o suficiente para permitir que qualquer mortal chegue à perfeição nesta ciência.” (DOYLE, 2009, p.21)

O personagem Sherlock Holmes afirma ser possível deduzir a partir de um detalhe “mediante estudos longos e pacientes” sua ligação com todo, seja ele um rio, a profissão de um sujeito, um crime. De certa forma, sua utilidade para os policiais da Scotland Yard está no fato dele conseguir transformar os indícios em evidência e, posteriormente, elaborar uma hipótese sobre o autor do crime. Seu faro, golpe de vista, intuição, associação, se devem por possuir conhecimento acumulado sobre o assunto. Assim é possível desvendar os crimes com facilidade incomum, conhecendo “todos os detalhes de mil crimes”.

Todavia, a referência que Carlo Ginzburg utiliza para demonstrar a relação do personagem de Conan Doyle com o paradigma indiciário, está numa outra trama. Diz Holmes ao Dr. Watson em A caixa de papelão (1983): “(...) examinei as orelhas contidas na caixa com olhos de especialista e observei acuradamente as suas características anatômicas” (DOYLE, 2009a, p.2). Holmes diz isso após sair da casa da Senhorita Cushing, idosa senhora solitária que recebera a caixa de papelão com um par de orelhas. Aqui, a mesma situação: um detalhe, a orelha, e outro crime, fato, a ser desvendado – alguém perdeu a orelha, mas quem foi? Por quê? E ainda: como tudo isso se relaciona com a Senhorita Cushing?
Ginzburg cita o trecho em que Holmes mostra-se:

"Na qualidade de médico, Watson, deve saber. Na Revista Antropológica do ano passado, você encontrará duas breves monografias de minha lavra sobre o assunto. Examinei, por isso, com olhos de entendido, as orelhas contidas na caixa, e verifiquei cuidadosamente suas peculiaridades anatômicas. Imagine, pois, meu espanto quando, ao olhar para a srta. Cushing, reparei corresponder sua orelha à orelha feminina que eu acabara de inspecionar. Não era possível pensar em coincidência. Ali estava o mesmo encurtamento da aurícula, a mesma curva larga do lobo superior, a mesma circunvolução da cartilagem interna. Em todos os pontos essenciais, era perfeita a semelhança. Percebi logo a enorme importância de tal observação. Era evidente ser a vítima uma consangüínea e até, provavelmente, parente muito próxima. Comecei a falar-lhe de sua família, e você se lembra que ela nos propiciou informações particularmente preciosas.” (DOYLE, 2009a, p.2)




Em outra forma de expor o raciocínio lógico de Holmes: se “não existe parte do corpo humano que apresente tantas variações como a orelha” e “Cada uma tem as próprias características, e difere de todas as demais.”, logo, orelhas iguais, corpos humanos iguais. Na trama do conto, o detetive, em sequência anterior a citada por Ginzburg, tivera visto as orelhas na caixa de papelão. Uma de suas intenções era saber a identidade delas. Com isso em mente e com suas “duas breves monografias” de sua própria lavra no assunto, a orelha, signo, irá permanecer no seu olhar enquanto observa a senhora. Daí segue a observação do detalhe: “Ali estava o mesmo encurtamento da aurícula, a mesma curva larga do lobo superior, a mesma circunvolução da cartilagem interna”. A conclusão “Era evidente ser a vítima uma consangüínea e até, provavelmente, parente muito próxima.”(DOYLE, 2009, p.2)
O outro argumento em que se baseia a crítica de Hélio Rebello, refere-se aos meios diferenciados em que são aplicados os métodos – o método de Sherlock Holmes e o semiótico médico:

“A fina percepção de Holmes, informada pelo conhecimento médico, expressa-se em observações empíricas nas quais a ligação, entre o detalhe (pista) e o fato maior, isto é, a identidade da vítima, faz-se por meio de uma conjectura por evidência. Ao contrário da sintomatologia médica e das demais disciplinas conjecturais,o método de Holmes aduz a uma hipótese a ser comprovada, ao passo que a etiologia médica constrói hipóteses sobre a causa de uma doença, mas não atinge jamais o grande fato que pressupõem como origem a disfunção orgânica, ou seja, a vida, conforme Foucault.”(CARDOSO, 2001, p.5)

De fato, Holmes trabalha sempre com uma hipótese, esta, por sinal, não é a nós, leitores, revelada de imediato. Nas duas histórias aqui analisadas – A caixa de papelão e Um estudo em Vermelho – é depois das evidências serem certificadas quanto a suas validades que o detetive encaminha a investigação na direção da captura do criminoso, a conclusão. Existe uma hipótese, e ela é trabalhada, pois, a soma das evidências não permite outra saída. Já com o procedimento médico, em particular aquele que se liga ao ‘paradigma indiciário’, a semiótica médica, o trabalho se desenvolve sobre uma série hipóteses. Mas será essa medicina mencionada pelo professor Hélio é a mesma que Ginzburg se refere?

A pergunta surge, pois, a medicina que o historiador italiano se refere está datada nos finais do século XIX, por isso a associação com Conan Doyle, Morelli e Freud. Já a referida pelo professor Hélio, parece ser contemporânea. Na impossibilidade, momentânea, de verificar se a etiologia, nosologia e sintomatologia eram práticas da medicina do século XIX, tomarei como válida a relação.

Sobre a relação do ‘paradigma indiciário’ e a semiótica médica, no artigo “A construção das doenças na medicina ocidental contemporânea” produzido no projeto Estudo comparativo de racionalidades médicas, Instituto de Medicina Social do Rio de Janeiro, há uma referência interessante envolvendo o paradigma indiciário. Aponta o médico Kenneth Rochel Camargo após analisar dois dos três eixos que compõem “arcabouço genérico de construção discursiva” da medicina – Explicativo, Morfológico e Semiótico:

“(...) O terceiro [semiótico] e último eixo é o da clínica propriamente dita onde as doenças são vistas como constelações de sinais e sintomas, formando gestalts semiológicas. (...) Fica claro, portanto, que esse eixo comporta um desenvolvimento simultâneo em duas direções: a da individualização, recorrendo ao método indiciário ( tal como descrito por Ginzburg) para recortar um gestalts semiológica específica, ao mesmo tempo, há um movimento de generalização, localizando o caso individual num inventário de doenças (a grade nosológica que aludi há pouco) produzido segundo o mesmo método (...)” (CAMARGO, 1993, p.31)

De fato, nessa perspectiva a forma com que os médicos captam os indícios através dos sintomas, sinais, em muito se assemelha ao procedimento de Holmes, principalmente quando esses sintomas são interpretados dentro de um “inventário de doenças”. É certo que o detetive não foge a essa totalidade, conhece “todos os detalhes de mil crimes” (DOYLE, 2009, p.22) e por isso elabora sua hipótese. No entanto, a investigação médica precisa elaborar um conjunto de hipóteses sobre a origem, a identidade, da disfunção orgânica. Ao paciente até final de sua vida são hipóteses que podem vir a ser comprovadas, trabalhadas, diminuídas ou unificadas para diagnosticar seu corpo doente. Evidentemente, com o óbito do paciente um conhecimento mais profundo e detalhado pode revelar ‘a verdade’, mas, nesse estágio, o movimento da vida não se capta mais. Têm-se uma hipótese comprovada, mas não no movimento da vida. O mistério da causa da morte está na própria vida e na sua terrível complexidade.

Texto disponível em:

BUENO, Fábio Martins. Sherlock Holmes e Dupin: personagens que inspiram o método investigativo em história. In Anais do II Colóquio de Letras. Assis: UNESP, 2010.
http://www.assis.unesp.br/coloquioletras/int_conteudo_sem_img.php?conteudo=715

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