quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Historiadores e detetives: Dupin e as séries


O professor Hélio Rebello propõe uma alternativa ao pesquisador que busca uma inspiração em personagens detetives. No conto A carta roubada de Edgar Allan Poe pode-se encontrar diversas passagens em que o detetive Dupin pensa seu método de investigação. No conto, uma carta contendo informações de alto valor foi roubada de um membro importante da corte. Todos sabem a identidade do ladrão, pois a vítima viu o exato momento em que foi roubada. O ladrão, o Ministro D, roubou a carta especial ao trocá-la pela carta que carregava no bolso. A vítima naquele momento não podia fazer nada, estavam todos em uma sala, se reagisse à investida do Ministro D, causaria nas pessoas que ali estavam o que menos desejava: o nome do remetente. Vendo-se nessa situação e não podendo fazer nada, a vítima acionou os agentes policiais. Esses secretamente examinam sucessivas vezes a casa do Ministro D, desde latrinas, pés das camas, livros, fechaduras, mas, sem sucesso.

Sem saídas, o Agente G procura o detetive Dupin. O detetive ouve a narração do caso e questiona o Agente G sobre as características dos envolvidos. Rapidamente procede a conversa que evidencia o grau de importância da carta e a principal pergunta ascende: aonde elas poderiam estar considerando os detalhes pessoais do ladrão, Ministro D; um homem versado em poesia e matemática? Em silêncio e pensativo, Dupin diz ao agente policial que não pode dar outro conselho a não ser que continuem as buscas na casa do Ministro D.

Passados alguns meses, o Agente retorna a casa do detetive oferecendo uma recompensa maior pela obtenção da carta:

“— Uma bolada. Estão oferecendo o dobro, agora. Eu daria do meu próprio bolso cinqüenta mil francos para quem conseguisse trazer essa carta para mim
— “Nesse caso”, disse Dupin, abrindo uma gaveta, “você poderia muito bem preencher um cheque com essa quantia para mim. Depois que você assiná-lo, eu lhe entregarei a carta”. (POE, 2006, p.20)

O detetive tira de sua escrivaninha a carta e a entrega ao agente que sai apressado do escritório. Dupin, satisfeito, olha para o assistente que sem entender a situação expressa no olhar a vontade de saber: “como ele recuperou a carta?” Dupin explica:

“Veja o caso da busca no apartamento de D***. O chefe de polícia partiu do princípio de que todos os homens procuram esconder uma carta roubada num esconderijo supostamente difícil de ser descoberto: um canto da casa, uma fresta, um buraco num móvel. Mas só mentes comuns agem assim, pois a descoberta do objeto roubado fatalmente virá, só dependendo de cuidado, paciência e obstinação da parte dos que o estão procurando.” (POE, 2006, p.21)

A explicação do detetive Dupin para o seu sucesso não é revelada sem antes compreender os motivos que levavam a polícia ao fracasso: eles não variam de método de investigação, possuem um roteiro que seguem a risca e também desconsideram a mente do adversário, sua provável maneira organizar um esconderijo. Embora em mundos distintos, esses temas mencionados no conto são até hoje caros aos historiadores. Atento a essas questões, o historiador Hélio Rebello escreve sobre as diferenciações entre o método do detetive Dupin e o paradigma conjectural semiótico:

“[...] os procedimentos de Dupin não podem corresponder à aplicação do paradigma conjectural às ciências humanas, nem em sua suposta versão semiótica- culturalista. O lugar onde se encontra a carta é o lugar onde se encontra a carta, embora não seja visível para todos. Quer dizer, o objeto não representa nada além de si mesmo, de forma que nenhum detalhe, nenhum “fenômeno de superfície”, poderia dar acesso a uma “conexão profunda”. O objeto se esgota na superfície, embora, repita-se, ele seja visível e invisível, passe por evidência ou por segredo, de acordo com a posição do olhar de cada envolvido. Com efeito, ater-se aos detalhes, neste caso, seria apenas a exacerbação da idéia de que o objeto encontra-se dentro do princípio que o investigador ou o historiador toma para si como sendo fundamentais para sua investigação ou para seu conhecimento histórico (a cultura, o movimento da história) [...]” (REBELLO, 2001, p.8)

Diferente do historiador italiano Carlo Ginzburg na sua perspectiva marxista, na interpretação de Hélio Rebello os procedimentos de Dupin em A carta roubada não se pautam no detalhe para alcançar uma realidade mais profunda e abrangente: o lugar onde a carta está é o lugar onde está a carta. Considerando que o objeto do detetive é o local onde está a carta, o objeto se transforma a partir do olhar daqueles que se interessam por sua busca. Dupin chega a esse raciocínio primeiramente considerando a lógica de seu adversário, o Ministro D. A partir dessas considerações e do fato das sucessivas buscas da polícia em pormenores da casa terem resultado em nada, percebe que há algo em comum entre a série um – membro da corte, ministro, carta e a série dois – detetive, ministro, carta. Em ambas as séries o jogo de mostrar e esconder a carta deixando ela sob uma evidência. Nenhum dos agentes desconfiaria que a carta roubada contendo informações de extrema relevância estaria à vista de todos:

“O detetive não faz mais do que cruzar duas séries para encontrá-la, como indica Deleuze. Numa primeira série, o personagem que deseja esconder a carta, pensa em ocultá-la deixando em evidência; o ministro que tudo percebe e toma a carta. Numa segunda série, o ministro, que agora deseja esconder a carta, pensa em ocultá-la deixando-a em evidência; Dupin tudo percebe e retoma a carta. Dupin, cruzando duas séries, percebe que há entre elas relações bastante definidas, que se exprimem regularmente por um jogo de visibilidade e invisibilidade do lugar da carta, a qual, materialmente, está sempre em evidência, sempre na superfície. E é justamente essas relações por ele sistematizadas que habilitam a recuperar a carta.” (REBELLO, 2001, p.9)
Texto disponível em:
BUENO, Fábio Martins. Sherlock Holmes e Dupin: personagens que inspiram o método investigativo em história. In Anais do II Colóquio de Letras. Assis: UNESP, 2010.
http://www.assis.unesp.br/coloquioletras/int_conteudo_sem_img.php?conteudo=715

CARDOSO, Hélio Rebello. Método historiográfico: método conjectural-semiótico de Holmes-Ginzburg e método serial de Dupin. In: Tramas de Clio: convivência entre filosofia e história. Curitiba: Ed. Aos quatro ventos, 2001, p.3 -12.

CAMARGO, Kenneth Rochel de. A construção das doenças na medicina ocidental contemporânea. Rio de Janeiro: Revista da SBHC, n.9, p.31-40, 1993. Acesso em 05/08/2009: www.mast.br/arquivos-sbhc/111.pdf

DOYLE, Arthur Conan. Sherlock Holmes: A caixa de papelão. Acesso em 02/07/2009: http//mundosherlock. googlepages.com/arthurconandoyle-acaixadepapelao.

DOYLE, Arthur Conan. Sherlock Holmes: um estudo em vermelho. São Paulo: Melhoramentos, 2009.

GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 2003, p.143 -179

POE, Edgar Allan. A carta roubada. In: Quatro contos. São Paulo: SOL, 2006, p.17-24.
http://200.136.76.125/colegio/livros/download/quatro_contos.pdf



Nenhum comentário:

Postar um comentário