quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A multidão e o historiador

Na avenida Paraná e cercania, em Londrina, localiza-se o centro comercial da cidade. Um cenário conhecido pela maioria dos londrinenses, porém, que guarda detalhes, situações inusitadas, perspectivas extraordinárias e lugares despercebidos. São elementos da paisagem urbana que estão escancarados aos olhos, mas que normalmente não são vistos.


Funcionários da Copel trabalhando na manutenção dos
postes elétricos localizados no bosque central da cidade

Local de contrastes, a rua é onde a população de uma cidade se encontra. Pobreza e riqueza, oportunidades e escassez de oportunidades, funcionários públicos, trabalhadores da indústria, trabalhadores informais, consumidores, batedores de carteiras, idosos e crianças, jovens e adultos. Gente de todo o tipo.

Fruto da observação da experiência coletiva cotidiana, essas cenas das ruas de Londrina, fixadas em imagens fotográficas são, guardadas as devidas proporções, como as imagens literárias das ruas de Londres disponíveis aos leitores do conto "O homem da multidão", de Edgar Allan Poe. Lá, o flâneur registrava suas observações com as palavras. Aqui, registramos com imagens.

Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. (Poe, Londres, 1844)
Calçadão comercial de Londrina, 2009


Descendo a escada do que se chama distinção, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontrei [...] mocinhas modestas voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda a sorte e de toda idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de joias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar-se, no vício, às suas colegas mais idosas [...] (Poe, 1844)

Calçadão comercial de Londrina, 2009


O historiador é, antes de mais nada, um flâuner da vida.

Como parte das atividades ligadas à disciplina de Métodos e Técnicas de Pesquisa, ministrada pelo professor dr. Rogério Ivano no mestrado de História Social da Universidade Estadual de Londrina, bem como às práticas discentes de pesquisa, ensino e extensão, foram realizadas, ao longo dos anos de 2009 e 2010, sessões fotográficas nas quadras que compõem o calçadão comercial de Londrina e redondezas. Algumas sessões foram realizadas durante os dias úteis com o propósito de registrar na objetiva da câmera a movimentação cotidiana das pessoas nos horários em que os estabelecimentos comerciais estavam em pleno funcionamento. Outras, no entanto, foram ao final do dia, quando o silêncio e o vazio preenchem o espaço deixado pelas vozes e pelos sons que durante todo o expediente ocuparam o ambiente público. Há também registros de manhãs dominicais, momentos em que o calçadão é tomado por artesãos, pasteleiros, floristas e outros vendedores que expõem seus trabalhados e promovem nova composição nesse ambiente urbano.

A feira do 'Feito à Mão' é realizada todo domingo
de manhã no Calçadão de Londrina

Mas, sendo a câmera recurso tecnológico de captação de imagens e fonte de informação sobre o mundo, quais são as possibilidades de leitura sobre o passado que uma fotografia abre para o observador?

A pergunta faz pensar a respeito das implicações que a utilização da técnica provoca sobre a produção cultural de uma época. Esse tema, que já em 1931 foi ensaiado por Walter Benjamin em "Pequena história da fotografia", ainda, e cada vez mais, traz à tona reflexões relativas ao nosso próprio momento histórico.Vivemos a era da imagem: celulares, câmeras digitais, máquinas filmadoras, sites como o you tube e blogspot são recursos amplamente difundidos entre a população mundial que com muita facilidade e qualidade captam e distribuem o mundo em imagens.

Para Benjamin, a divulgação simultânea dos trabalhos de fixação da imagem em camera obscura de Niepce e Daguerre, bem como de Hercules Florence, transformou o horizonte da pintura de retratos e inaugurou um novo momento na história da arte. Eis os primórdios da fotografia... lá pelos idos de 1830... Houve quem dissesse que além de ser cientificamente impossível "fixar efêmeras imagens de espelho", a fotografia era um projeto sacrílego. O jornal alemão Leipziger Anzeiger participou de um debate a respeito do tema protestando contra a "diabólica invenção". O texto dizia o seguinte:


[...] O homem foi feito à semelhaça de Deus, e a imagem de Deus não pode ser fixada por nenhum mecanismo humano. No máximo o próprio artista divino, movido por uma inspiração celeste, poderia atrever-se a reproduzir esses traços ao mesmo tempo divinos e humanos, num momento de suprema solenidade, obedecendo às diretrizes superiores do seu gênio, e sem qualquer artifício mecânico. (Leipziger Anzeiger apud Benjamin, 1931, p. 92)

Decorridos uns bons anos da publicação desse manifesto jornalístico, percebe-se hoje tranquilamente que o argumento do texto não teve grande repercussão. A fotografia se popularizou de uma tal maneira que atualmente, ao menos no que se refere à população urbana mundial, é difícil encontrar quem não tenha um acesso relativamente fácil a esse artifício mecânico.

Mas, voltando a Walter Benjamin... o filósofo alemão ressalta o fato de a técnica poder dar às suas criações um valor mágico surpreendente, pois apesar da perícia do fotógrafo, de sua habilidade no manejo da câmera e também na revelação da imagem, é "[...] a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem [...]." que interessa ao observador de uma fotografia. (Benjamin, p. 94).

[...] A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através de seus recursos auxiliares: câmera lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (Benjamin, p. 94)
Pois Benjamin acaba por concluir que, ainda que a fotografia revele "mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e significativas", ela também revela que "a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente histórica". (Benjamin, p. 94-5). 
Pois se em seus primórdios a fotografia foi negada pela ciência e identificada a um instrumento diabólico, atualmente é a pedra de toque da nossa imagem de mundo e fonte de pesquisa para inúmeros profissionais das ciências.

O diagnóstico de Benjamin a respeito da inserção da fotografia na esfera da arte é o seguinte: a fotografia como expressão artística teve seu apogeu no primeiro decênio após o nascimento técnico da camera obscura, por volta de 1840. O crédito de tal feito ele dá aos Nadar, Hugo, Cameron e Hill, bem como os Stelzner, os Pierson, os Bayard. Todavia, na opinião do filósofo a esfera artística da fotografia sucumbiu à industrialização. 

Mas finalmente os homens de negócios se instalaram profissionalmente como fotógrafos, e quando, mais tarde, o hábito do retoque, graças ao qual o mau pintor se vingou da fotografia, acabou por generalizar-se, o gosto experimentou uma brusca decadência. Foi nessa época que começaram a surguir os álbums fotográficos. (Benjamin, p. 97)

Diz Benjamin, com todas as palavras traduzidas por Sérgio Paulo Rouanet, que ao adentrarem o ramo da fotografia, os homens de negócios provocaram a decadência brusca do gosto e, simultaneamente, começaram a surgir os álbuns fotográficos. Uma ruptura estética foi provocada pela fotografia no âmbito da arte e isso, ao generalizar-se, provocou a decadência da produção e da recepção da pintura, principalmente de retratos e de miniaturas, que não por acaso foram as atividades artísticas mais afetadas pela fotografia.

Mas, que gosto é esse a que se refere o autor? Um gosto que não era próprio da cultura burguesa alemã novecentista. Um gosto que era fruto de uma arte aristocrática, fiel e auto herdeira de gregos clássicos, romanos e renascentistas. Clássica, religiosa, arrebatadora, bela seriam esses alguns dos adjetivos para definir essa arte que, segundo Benjamin, entrou em decadência com a ampliação social da fotografia, que por sua vez tornou-se um forte símbolo da modernidade.
Já por volta de 1860 começa a se tornar comum, em lares alemães, a disposição de álbuns de fotografias pelos cômodos 'públicos' das casas burguesas.

[...] Eles podiam ser encontrados nos lugares mais glaciais da casa, em consoles ou guéridons, na sala de visitas — grandes volumes encadernados em couro, com horríveis fechos de metal, e as páginas com margens douradas, com a espessura de um dedo, nas quais apareciam figuras grotescamente vestidas ou cobertas de rendas [...]. Os acessórios desses retratos, com seus pedestais, balaustradas e mesas ovais evocam o tempo em que, devido à longa duração da pose, os modelos precisavam ter pontos de apoio para ficarem imóveis. (Benjamin, p. 98)

Mas, Benjamin ainda encontra na fotografia a possibilidade artística e, mesmo que em meio à nascente indústria cultural, vê nas fotografias de Eugène Atget e August Sander uma saída para a arte ainda que sob condições adversas.
Atget era pobre, desconhecido e vendia suas fotografias por alguns centavos para qualquer um que quisesse pagar. Foram altamente reproduzidas por publicistas da época de Benjamin e, além disso, foram precursoras da fotografia surrealista (p. 100).

[...] Ele buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes de cidades; elas sugam a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio que afunda." (Benjamin, p. 101).



E o que é a aura para Walter Benjamin?

[...] É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja. (Benjamin, p. 101).

 Mas, continua,

[...] fazer as coisas se aproximarem de nós, ou antes, das massas, é uma tendência tão apaixonada do homem contemporâneo quanto a superação do caráter único das coisas, em cada situação, através de sua reprodução. (Benjamin, p. 101).
 O homem contemporâneo de Benjamin é o agente da indústria cultural, aquele que trabalha pela transformação da arte em mercadoria, que tenta superar o caráter único do acontecimento em si  apresentando a fotografia como sua reprodução. Imagem é a maneira como Benjamin chama o acontecimento em si. Nela, na imagem, afirma, "a unicidade e a durabilidade se associam tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a reprodutibilidade". (p. 101) Atget fotografou uma Paris vazia. Não há pessoas em suas reproduções. Os locais mais movimentados da cidade aparecem nas fotografias de Atget vazios, silenciosos, distantes da realidade cotidiana da vida urbana. E, justamente por isso, produz uma obra de arte com suas fotografias.




Entretanto, no caso de Sander a questão se inverte. Para Benjamin, suas fotografias são artísticas justamente devido à presença das pessoas. Numa perspectiva científica, organizou sua obra em sete grupos que "correspondem à atual ordem social" e que pode ser percebidos enquanto uma perspectiva antropológica.

[...] "Sander parte do camponês, do homem ligado à terra, conduz o observador por todas as camadas e profissões, desde os representantes da mais alta civilização até os idiotas". Nessa terafa imensa, o autor não se comportou como cientista, não se deixou assessorar por teóricos racistas ou por sociólogos, mas partiu, simplesmente, da "observação imediata". (Benjamin, p. 103).





Porém, lembra Benjamim, no âmbito da "arte como fotografia" há, de fato, a possibilidade de que a fotografia se apresente para muitas pessoas como a única via de acesso da realidade artística: pinturas, esculturas e outras obras de arte que só podem entrar para o imaginário de uma pessoa graças à reprodução fotográfica. Essa é, para o filósofo, a rendenção da fotografia. 

Mas, consideremos um caso: o caso das fotografias da cidade: ruas, pessoas, construções arquitetônicas, momentos, passagens, cenas inusitadas que passam inconscientemente diante dos olhos dos transeuntes. Fixadas pela objetiva da câmera, essas cenas se cristalizam, tornam-se imagens do vivido e, como uma espécie de imã, magnetizam o olhar do observador.

Segundo o historiador contemporâneo Sthephen Greenblatt, a fotografia, um objeto cultural e também uma fonte historiográfica, ao mesmo tempo em que tem o poder de entrar em ressonância com as forças culturais do passado, encanta o observador.


Por ressonância entendo o poder do objeto exibido de alcançar um mundo maior além de seus limites formais, de evocarem quem os vê as forças culturais complexas e dinâmicas das quais emergiu e das quais pode ser considerado pelo espectador como uma metáfora ou simples sinédoque. Por encantamento entendo o poder do objeto exibido de pregar o espectador em seu lugar, de transmitir um sentimento arrebatador de unicidade, de evocar uma atenção exaltada. (Greenblatt, 1991, p. 8)

A fotografia cristaliza o movimento e o tempo, o balançar de um braço, o segundo. Faz parecer ser aquilo que não foi. Evoca a realidade e encanta o historiador, faz crer que mesmo sendo o congelamento de uma fração de segundo, pode revelar o que aconteceu.

Longe de ser um documento neutro, a fotografia cria novas formas de documentar a vida em sociedade. Mais que a palavra escrita, o desenho e a pintura, a pretensa objetividade da imagem fotográfica [...] não apenas informa o leitor — sobre datas, localização, nome de pessoas envolvidas nos acontecimento — sobre as transformações de tempo curto, como também cria verdades a partir de fantasias do imaginário [...]. (Borges: 2008, p. 69)


O cotidiano inusitado: cenas do calçadão londrinense






Crédito das fotografias:
Fábio Martins Bueno




Crédito das fotografias:
Maria Siqueira Santos



Crédito das fotografias:
Max Alexandre de Paula






Crédito das fotografias:
Rogério Ivano


Referências bibliográficas:
  • Benjamin, Walter. "Pequena história da fotografia". In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 91-107. 
  •  Borges, Maria Eliza Linhares. História e fotografia. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
  • Greenblatt, Stephen. "O novo historicismo: ressonância e encantamento. In: Estudos Históricos, vol. 4, n. 8. Rio de Janeiro, 1991, p. 244-261. 
  • Poe, Edgar Allan. O homem na multidão. Obtido em: http://www.alfredo-braga.pro.br/biblioteca/homemnamultidao.html. Acessado em: 20/08/2010.

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